Resumo: É preciso preservar e restaurar patrimônios arquitetônicos para manter viva a história, a beleza e a cultura dos povos. Desse patrimônio, as arquiteturas de terra crua – sejam elas antigas, construídas com técnicas rudimentares ou construções mais recentes, feitas com técnicas apuradas – são obras-primas de inestimável valor. Defendê-las é fundamental para memória da humanidade.

No entanto, não basta boa vontade. Restauração e preservação exigem conhecimento das teorias de restauro dos mestres da área e ampla formação técnica. Ainda, toda restauração deve ser precedida de pesquisa histórica, do cadastramento do existente e da concepção do projeto, para posterior desenvolvimento. Isso tudo exige a colaboração de profissionais de Arqueologia, de Museologia e de várias áreas da Engenharia.

Os sistemas construtivos com solo-cal são parte importante dos sistemas construtivos com terra crua. Neste trabalho, foi estudado o efeito dos argilo-minerais encontrados em quatro tipos diferentes de solos tropicais, depois de estabilizados com cal em diferentes porcentagens. Ficou claro que os solos tropicais, provavelmente por terem sofrido processos de formação de intensidades diferentes dos solos europeus e norte-americanos, interferem na qualidade do sistema solo-cal. Também ficou clara a necessidade de aprofundar o estudo do solo-cal, principalmente no que se refere ao preparo do traço e ao tempo e processo de cura.

Introdução

Hoje em dia discute-se muito a necessidade de restauração e preservação dos patrimônios históricos, mas, apesar das teorias desenvolvidas pelos grandes mestres do restauro – as conhecidas cartas patrimoniais – não há consenso sobre o assunto. De qualquer forma, um princípio básico é sempre reconhecido: a restauração dos monumentos arquitetônicos tem, por obrigação, adequá-los à apropriação pela sociedade. Isto significa que o monumento restaurado deve ser utilizado de todas as formas.

Por outro lado, é fato conhecido que o homem contemporâneo tem necessidades e ambições diferenciadas, que variam em função da cultura. O arquiteto precisa, portanto, estudar as características das culturas construtivas de cada região para desenvolver sistemas construtivos que dêem, ao usuário, o ambiente que ele quer ter, respeitando a grande evolução social e tecnológica do nosso tempo.

A restauração de monumentos arquitetônicos em terra crua e a concepção de novos espaços, também em terra crua exigem conhecimento especializado. Em seu conhecido dicionário, Viollet-Le-Duci diz, no verbete “restauro”, que edifícios góticos são “verdadeiros livros de pedra”. Estendendo a metáfora, pode-se dizer que monumentos arquitetônicos de terra crua são “livros de terra” que devem ser conhecidos, estudados e decifrados. Só assim se poderá desenvolver uma técnica construtiva para restaurar importantes patrimônios e criar, com esse material abundante que permite infinitas possibilidades plásticas, novos espaços de arquitetura contemporânea.

Metodologia

Todos os edifícios construídos com terra crua, isto é, com terra estabilizada por meio de simples compactação ou pelo uso de aditivos aglutinantes, sejam eles naturais ou industrializados, constituem arquitetura de terra. O solo é, portanto, a principal matéria prima para qualquer sistema construtivo em terra crua. No caso particular da taipa de pilão ou adobe, o solo – desde que tenha algumas características físicas especiais – é o único material usado. Na maioria das vezes, no entanto, acrescentam-se ao solo fibras vegetais, aglutinantes naturais ou industrializados como cal e cimento, para estabilização. Mas mesmo nesses casos, o solo representa de oitenta a noventa e dois por cento (dependendo de suas características) do peso da estrutura construída. Daí, a importância de ter maior informação sobre esse material.

Neste trabalho foram estudados quatro tipos de solo classificados, segundo a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) como LVA (latossolo vermelho amarelo distrófico típico), PVA (argissolo vermelho-amarelo distrófico típico), LV (latossolo vermelho acriférrico) e VG (vertissolo hidromórfico).

De início, foram coletadas amostras de solo em seus locais de origem. Depois, foram feitas análises de cor, granulometria e composição mineralógica das amostras, para comprovar a classificação feita pela EMBRAPA.

A identificação e a quantificação de minerais foi feita por meio de ensaios de difração de raios X, de acordo com a metodologia proposta por Camargo et al (1986). O método baseia-se no fato de minerais cristalinos produzirem diferentes padrões de difração dos raios X.

Os solos foram, então, secados ao ar, destorroados em destorroador mecânico e peneirados em peneira de 4,8mm. Depois se adicionou cal ao solo nas seguintes porcentagens: 0,0%; 4,0%; 8,0% e 12,0%. As quantidades de cal foram calculadas em função do peso seco do solo. Este procedimento não é adotado nos canteiros de obras, mas foi utilizado neste trabalho para poder controlar, com precisão, as porcentagens de cal na mistura. A porcentagem ótima de cal para cada tipo de solo estudado, conforme indicam a prática e a literatura da área, deve estar no intervalo estudado.

Alguns autores indicam um período de cura antes da compactação, para solos muito plásticos e de difícil trabalhabilidade, como os estudados no presente trabalho. Foi então dado um período de descanso de vinte e quatro horas, após a adição de água. Essa cura prévia obedeceu à recomendação dos manuais do DNER.

Os valores da massa específica e os valores da umidade ótima foram determinados de acordo com as normas previstas na NBR 7182, através de ensaio de compactação. Para cada tipo de solo coletado e cada percentual de cal estabelecido, foi feito um ensaio de compactação. Isto porque a incorporação de cal ao solo achata as curvas de compactação, pois diminui o valor da massa específica e aumenta o valor da umidade ótima. Depois, foram moldados os corpos de prova compactados na densidade máxima com energia normal.

Ensaios de expansão, retração e compressão

Para fazer os ensaios de expansão e retração, foram moldados 48 corpos de prova mini-CBR, com 50mm de diâmetro por 50mm de altura (Figura 1). Para os ensaios de compressão simples, foram montados 48 corpos de prova no cilindro de Proctor, com 100mm de diâmetro por 127mm de altura. Todos os corpos de prova foram moldados com a mistura de solo e cal, curada previamente por 24 horas.

Figura 1
Mini CBR moldados para os ensaiso de retração e expansão com os quatro tipos de solos e quatro diferentes percentuais de cal.
Figura 1 Mini CBR moldados para os ensaiso de retração e expansão com os quatro tipos de solos e quatro diferentes percentuais de cal.

Os corpos de prova, depois de moldados no mini-CBR na umidade ótima de compactação, mas ainda dentro do cilindro, foram submersos em água, seguindo as normas determinadas pelo DNER para ensaios de mini-cor e expansão de solos compactados. Com os valores obtidos na condição “com embebição”, foi calculada a expansão para cada corpo de prova.

Depois de moldados no mini-CBR, os corpos de prova foram extraídos e, ainda na umidade ótima de compactação, foram submetidos aos ensaios para determinar a retração, de acordo com as normas descritas pelo DNER na Determinação da contração de solos compactados em equipamento miniatura.

Para estabelecer a resistência à compressão simples, foram moldados três corpos de prova para cada tipo de solo, com cada porcentagem de cal. O tempo de cura foi de 28 dias, sendo os primeiros sete em câmara úmida e os demais à sombra. Os ensaios foram realizados seguindo as determinações descritas na NBR12770. Usou-se uma prensa eletro-hidráulica Wykeham-Farrance com capacidade de cinco toneladas, com anel 5170 de 1500kg com constante 0,8360kg/divisão, com relógio comparador de 0,002cm.

Resultados

A análise da composição mineralógica dos solos por meio dos ensaios de difração de raios X conduziu aos resultados apresentados na Tabela 1.

Tabela 1
Interpretação da análise da composição mineralógica
Tabela 1 Interpretação da análise da composição mineralógica

Os ensaios de expansão conduziram aos valores apresentados na Tabela 2 e no Gráfico 1. O VG tem a maior expansão, mas, como se vê facilmente no gráfico, essa expansão diminui muito com a adição cal.

Os resultados dos ensaios de retração estão na Tabela 3 e no Gráfico 2. É fácil ver que o VG tem, em média, a maior retração. Para os quatro tipos de solo estudados, a retração diminui acentuadamente com o acréscimo de 4% de cal, mas depois tende à estabilização, pelo menos no intervalo estudado.

Tabela 3
Resultados dos ensaios de retração, em porcentagem.
Tabela 3 Resultados dos ensaios de retração, em porcentagem.
Gráfico 2.
Retração dos solos, em porcentagem, em função do percentual de cal.
Gráfico 2. Retração dos solos, em porcentagem, em função do percentual de cal.

Os valores de compressão simples medidos em kgf/cm2 e as respectivas médias estão na Tabela 4. É fácil ver que o PVA tem, em média, maior resistência à compressão. No entanto, sem adição de cal, o VG tem a maior resistência à compressão. O LV e o PVA respondem bem à adição de 4% de cal. No caso deste último, a resistência continua aumentando com o aumento de cal, conforme
mostra o Gráfico 3.

Tabela 4
Resultados dos ensaios de compressão em kgf/cm2
Tabela 4 Resultados dos ensaios de compressão em kgf/cm2
Gráfico 3.
Resultados dos ensaios de compressão simples
Gráfico 3. Resultados dos ensaios de compressão simples

Para estudar a resistência dos solos à compressão simples em função do aumento do porcentual de cal, foram ajustadas retas de regressão da tensão contra a porcentagem de cal adicionada. Os resultados apresentados no Gráfico 4 não são significantes. Mesmo assim, é fácil ver que a adição de cal fez o PVA aumentar a resistência à compressão simples. A explicação para a não- significância dos resultados talvez seja a metodologia adotada para o preparo da mistura solo-cal e o pouco tempo de cura a que os corpos de prova foram submetidos.

Gráfico 4.
Retas de regressão ajustadas aos dados dos ensaios de compressão simples
Gráfico 4. Retas de regressão ajustadas aos dados dos ensaios de compressão simples

Conclusões

  1. Solos com predominâncias diferentes de argilo-minerais mostram características diferentes em diversos ensaios. Portanto, os argilo-minerais têm influência sobre o sistema solo-cal.
  2. A metodologia adotada neste trabalho não conseguiu captar pequenas variações de expansão que possam, eventualmente, ocorrer nos solos LVA, PVA e LV. Observou-se, porém, que o VG natural tem grande expansão, que diminui acentuadamente com a adição de cal.
  3. A retração depende do tipo de solo e da quantidade de cal adicionada, mas diminui acentuadamente com o acréscimo de 4% de cal. Depois, tende à estabilização.
  4. A metodologia utilizada para fazer a mistura precisa ser questionada, pois se observou que o uso de uma pré-cura não é conveniente para a Arquitetura de Terra. A compactação posterior provoca perdas das ligações solo-cal.
  5. A adição de cal parece não aumentar a resistência à compressão simples, a não ser para o PVA. Portanto, a recomendação é a de que seja feita a compactação logo após o preparo da mistura.
  6. Os ensaios de compressão simples mostraram a alta variabilidade dos solos naturais, em função de sua composição. Os corpos de prova foram, porém, poucos para uma afirmativa final. Dada a importância de estabelecer parâmetros para a construção e, principalmente, para o restauro das arquiteturas de terra, é preciso fazer novos ensaios – e com maior número de repetições.
  7. Este trabalho mostrou que existem diferenças significativas entre os diferentes tipos de solo, dependendo de sua composição mineralógica. Entre os solos estudados, o PVA é o mais recomendado para a arquitetura de terra. De modo geral, os latossolos podem ser utilizados, mas devem ser evitados os solos expansivos que contenham alta quantidade de montmorilonita, como é o caso do VG.
  8. A adição de cal é benéfica, sobretudo para melhorar a trabalhabilidade e reduzir a contração e a expansão dos solos argilosos, evitando assim, problemas de fissuração nas estruturas de terra.

Referências

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CAMARGO, O. A.; MONIZ, A. C.; JORJE, J. A. ; VALADARES, J. M. A. S. Métodos de análise química, mineralógica e físicas de solos do Instituto Agronômico de Campinas. Campinas. 1986. 94p.

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VIOLLET-LE-DUC, Eugénne Emmanuel. Restauro. Apresentação, tradução e comentários críticos por Odete Dourado. Salvador: PPG –FA -UFBa, 1999. 55p.

Marcio V. Hoffmann, arquiteto e urbanista, mestre em Preservação e Restauração de Patrimônios Históricos pela FAUFBa, membro da Rede Iberoamericana PROTERRA e da Rede TerraBrasil, proprietário da FATO arquitetura e sócio da TAIPAL construções em terra.

Microsoft Word – Efeito dos argilo minerais Portugal.doc

i O arquiteto francês Eugène Emmanuel VIOLLET-LE-DUC é considerado o pioneiro na elaboração das teorias sobre a preservação e restauração de monumentos divulgados a partir do século XIX. Assumindo o pensamento científico da época, Viollet-le-Duc considera o monumento como um documento que deve ser restabelecido e, com isso, auxiliar na instalação do novo, referindo-se especialmente à arquitetura gótica francesa como estilo arquitetônico que sintetiza técnica e arte.